Você já se perguntou acerca da sua relação com seu cabelo? As diferentes formas das quais o arrumamos, cortamos, e a forma como ele edifica nossas identidades é algo interessante a se pensar.
O cabelo é considerado a “moldura do rosto” e é considerado um vetor cultural de descoberta de características inerentes a um determinado grupo ou pertencimento a um determinado meio social.
Com isso, quando pensamos na relação da mulher negra e o seu cabelo, cabe a reflexão de como este processo é componente identitário da personalidade dessas mulheres, assim como quais são os processos de subjetivação que são inerentes a esse fenômeno. Segundo Oliveira & Mattos (2019), pensar a relação da mulher negra com o seu cabelo é considerar que essa é mediada pelas percepções externas de vários outros, marcado por diversas violências raciais.
Refletir acerca dos cabelos das mulheres negras, é discutir sobre a formação das suas identidades, pois estas são construídas socialmente, não são inatas (Oliveira & Mattos 2019). A identidade é colocada, no texto citado, como um processo fluído permeado por elementos histórico-culturais.
No Brasil, a constituição da sociedade foi pautada a partir de um ideal eurocêntrico, mantido a partir de práticas e valores racistas que sustentam o mito da democracia racial. Sendo assim, os corpos negros são marginalizados e subjugados. Dentro desse contexto, os corpos das pessoas negras materializam diversos estigmas sociais. Brandão (2011, citado Oliveira & Mattos, 2019) coloca que os processos de construção de identidade das pessoas negras são marcados pelo referencial dominante branco.
Sendo assim, historicamente as mulheres negras são colocadas em posição de inferioridade econômica, política e social, em contrapartida com um modelo branco que é colocado como um modelo positivo de identidade. Durante o processo de subjetivação, meninas, garotas e mulheres negras lidam com a tensão entre uma imagem construída a partir de um processo de dominação racial e a luta por uma autoimagem positiva.
Em nossa sociedade, práticas discursivas racistas que são disseminadas via redes sociais, mídia, ou senso comum, acabam regulamentando normas sociais que inferiorizam a mulher negra.
Os estereótipos que são criados em relação às mulheres negras as colocam fora do padrão de beleza, em que a identidade desse grupo é erigido a partir das vivências dos seus corpos. Além disso pode-se acrescentar que no senso comum, a mulher negra é desumanizada a partir de narrativas de objetificação, hipersexualização e/ou animalização, o que acaba por perpetuar e legitimar violências físicas, psicológicas e afetivas.
“ (...) a prática de mulheres e meninas negras de alisar ou submeter os fios a procedimentos estéticos invasivos e, muitas vezes, danosos à saúde, de maneira a se adequarem (ainda que inconscientemente) ao padrão de beleza branco, produz experiências marcantes, muitas vezes violentas, que não são experienciadas por mulheres brancas. Para mulheres negras, alisamentos e tratamentos capilares que têm como referência ideais de beleza brancos operam, conscientemente ou não, afastamentos em relação aos seus antepassados negros/as. Os cabelos das mulheres negras na sociedade brasileira dizem respeito ao conflito social presente nas relações sociais. Ao ouvirem que seu cabelo é “ruim”, as mulheres negras estão sendo também interpeladas em sua identidade. Por sua vez, a decisão por abandonar tratamentos capilares embranquecedores e assumir cuidados que incluem colorir, raspar, trançar e enfeitar os cabelos com adereços da cultura negra tem sido narrada por mulheres negras como processos acompanhados de experiências de autonomia e de ressignificação de suas identidades. (Oliveira & Mattos, p. 2019).
As autoras salientam ao longo do texto algumas características que estão presentes neste processo identitário das mulheres negras.
Infância
Os processos de alisamento e procedimentos capilares, em sua maioria, acontecem no período da infância, portanto, desde muito cedo as meninas sofrem a dicotomização do que é bom e do que é ruim, do que é bonito e feio, sendo sempre colocadas nas segundas categorias. Com isso, segundo Gomes (2005, citado em Oliveira & Mattos, 2019), desde muito cedo é ensinado às pessoas negras a negar-se a si mesmas, para sem aceitas.
Também é evidenciado que durante a infância e a adolescência acontecem diversos processos de subjetivação que influenciam diretamente na composição da identidade dessa criança.
Característica Transgeracional
É evidenciado no texto que muitos hábitos de cuidados com os cabelos são passados de geração a geração pelas mulheres mais velhas da família. Hooks (2005, citado em Oliveira & Mattos, 2019), acrescenta que por muitas vezes o processo de mudança capilar é vista como um ritual de transição da “menina” para mulher.
O cabelo e o sofrimento
Muitas vezes a dimensão do cabelo para mulher negra é inserido como algo a se “lidar”. Gomes (2008, p.7, citado em Oliveira & Mattos, 2019), inclui que a nomeação do cuidado com os cabelos crespos, dessa forma, acaba o coisificando, um trabalho forçado que remete a uma lógica escravista. A mulher negra então passa a despender uma grande quantidade de energia a fim de se encaixar no ideal estético branco.
Também inclui-se a noção de suportar, até a última consequência, procedimentos estéticos agressivos que, segundo as autoras, revelam as questões de auto-ódio, baixa auto-estima e a tomada de uma parte de seu corpo como inimiga.
Segundo Oliveira & Mattos (2019), as mídias sociais e os meios de comunicação também agem como fortes condicionantes na formação da identidade dessas mulheres, já que hegemonicamente o que é apresentado é a idealização da estética branca como ideal. Por isso, os processos em que as negras passam de redescobrir seus cabelos, os denominados processos de transição, nos quais elas abandonam as químicas e os procedimentos de alisamento, configuram como um processo de empoderamento e representatividade a essas mulheres. Além disso, permite o resgate histórico de sua identidade, assim como o uso de tranças, com a historicidade de seu povo.
Referências
Oliveira, A. P. O., & Mattos, A. R. (2019). Identidades em transição: Narrativas de mulheres negras sobre cabelos, técnicas de embranquecimento e racismo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 19 (2), pp- 445-463.
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